Carmen Miranda
Jamais esqueceremos sua "primeira vez"
Redação - Luiz Guarany

Eis que um belo dia um lindo livro cai aos meus pés, literalmente, na Livraria Martins Fontes... Sim, eu comprei um livro infantil sem ter crianças na família. Dei-me de presente e fiquei tão encantado que resolvi contar a história dele à minha maneira. Carmen Miranda merece ser parte do universo de cada brasileiro tanto quanto do infantil. Ela quem me inspirou a escrever esta coluna, que será mensal, sempre reverenciando alguma figura notória do Samba, ao final, sempre gravarei, de forma caseira, um trecho ou canção que para mim, simbolize algo de extrema importância sambista.






“A pequena notável”, como ficou conhecida a partir de 1935, era dotada de beleza singular: grandes olhos verdes que seduziam ao piscar, semicerrar ou arregalarem-se aclarando multidões com tamanho brilho a cada interpretação. Dotada de corpo curvilíneo, cintura de boneca, pernas e abdômen quase sempre à mostra revelavam, no palco, a “grande mulher” de 1m53, acrescida de vários centímetros por seus sapatos com altas plataformas. “Nunca segui o que dizem que está na moda. Acho que a mulher deve usar o que lhe cai bem”, assim adotou sua vestimenta peculiar e performática, a partir de 1938, oriunda do filme brasileiro “Banana da Terra”.

Com tantos atributos visíveis é difícil acreditar que o que mais lhe rendia atenção eram suas mãos: expressivas, delicadas, sinuosas, que num show à parte, coreográfico e refinado davam ainda mais graça às suas canções. “Dizem que minhas mãos falam. Não sei. Mas procuro transmitir o máximo através delas, nos movimentos e expressões rítmicas”.

Era de esperar que tal mulher, além de marcante, com tamanho talento e personalidade, realizasse no mínimo seu desejo mais íntimo e, dele surgisse o que chamo de “sua primeira vez” ou melhor, “suas primeiras vezes”.“Gosto muito dos aplausos de uma plateia, seja esta qual for. Gosto de toda a gente e adoro as reuniões festivas. Vivo de alegria.” Ao deixar-se à mercê disso, inclusive fazia performances em praças públicas para os que não pudessem ir aos seus concertos. Pioneira, desbravou o mundo para os artistas brasileiros, fez-se estrela da América à Ásia em diversos segmentos artísticos (música, teatro, cinema...). Pela primeira vez tivemos nossa arte impressa nos olhares do mundo, pela primeira vez fomos vistos como um país de talentos, pela primeira vez nosso Samba foi além da latinidade sul-americana. Isto, eu chamo de uma vida repleta de “primeiras vezes”.



Nascida em Portugal, Carmen Miranda veio para o Brasil em 1910, criada na Lapa, Rio de Janeiro, estudou em colégio de freiras, destinado à comunidade carente. Sua família humilde, com mais cinco irmãos era sustentada pelo pai, barbeiro, mas complementava a renda com as refeições que a mãe servia em uma pensão para os trabalhadores do comércio. Neste panorama, Carmen começou a trabalhar cedo como balconista de lojas femininas. Ao trabalhar em uma chapelaria, passou a confeccionar peças com destreza e criatividade. Passou por lojas de gravatas, sobre as quais rondam duas lendas: numa delas cantava para atrair clientes e na outra foi demitida por distrair outros funcionários. Fato é que sua forma de entretenimento chamou a atenção do compositor e violonista Josué de Barros, que além de pagar suas aulas de dicção, levou Carmen às gravadoras Brunwisk e Victor, recém instaladas no Brasil.

Com a demora do lançamento de seu disco pela Brunwisck, a cantora assina contrato com a Victor e em seu terceiro disco, quebra o recorde de vendagens brasileiro, em 1930, com 36 mil cópias do sucesso “Pra você gostar de mim”, que os fãs apelidaram de “Ta-hí”, composição de Joubert de Carvalho. Naquela época a média era de 1000 cópias vendidas por disco. Foi responsável também pelo lançamento de muitos compositores como Pixinguinha, Canhoto, Benedito Lacerda... Em 1935, assinou contrato com a gravadora Odeon.

Tanto sucesso abriu as portas para suas primeiras vezes.Carmen Miranda foi a primeira artista a ter um contrato em rádio, já que os cachês eram negociados apenas por única apresentação. Em 1933, era cantora da rádio Mayrink Veiga, em 1936 passou a Rádio Tupi, com mais que o dobro de seu salário mensal. No final da década de 30, Carmen era artista exclusiva do Cassino da Urca, onde interpretava canções dos maiores compositores, como Ary Barroso e Assis Valente. Se não bastasse o sucesso no Brasil, lá, foi assistida por Lee Schubert, empresário influente na Broadway, acompanhada pelo Bando da lua, primeiro grupo a utilizar a harmonia vocal no país. Foi inevitável o surgimento do convite para atuar na terra do Tio Sam, que demorou a ser aceito, pois Carmen Miranda foi a primeira artista a exigir a viagem de seus músicos para acompanhá-la. Após  negociação, embarcou para os Estados Unidos em 1939, às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Além de ser a primeira artista brasileira em solo norte americano, lá concretizou uma série de debuts no show business.

Nesta época, seu disco “Alô, alô”  havia sido o primeiro a ser lançado no Japão.
“Vou empregar todos os meus esforços para que a música popular do Brasil conquiste a América do Norte, o que seria um caminho para sua consagração em todo o mundo” . E assim o fez.
Estreou em maio de 1939, em Boston, no espetáculo “Streets of Paris”  que, logo foi transferido para a Broadway, rendendo elogios da diva de Hollywood, Greta Garbo à nossa musa. No cinema hollywoodiano, seu primeiro filme foi “Serenata tropical” (Down Argentine way), onde interpretou sucessos, como “Mamãe eu quero” e “Bambu bambu”, o que seis meses depois lhe garantiu o debut brasileiro na calçada da fama e na Casa Branca, ao apresentar-se para o presidente Franklin D. Roosevelt.

Ao voltar para o Brasil, em 1940, enfrentou a frieza dos políticos do Estado Novo que a achavam americanizada. O que mais tarde lhe rendeu o sucesso “Disseram que voltei americanizada”. Dois meses depois foi ovacionada em outro show, por todos os seus fãs e gravou seus últimos discos no Brasil, depois voltando a residir nos EUA.


Aproveitando-se de seu sucesso, a inseriram no casting da Política da Boa Vizinhança, ação norte-americana para angariar apoio de outros países na guerra. O projeto consistia na ida de artistas latino-americanos para o país e, embora houvesse chegado antes da implantação da Política, até mesmo em seu filme “Entre a Loura e a Morena” (The gang’s all here), é incluída neste grupo. No filme, de 1943, entre outras performances, protagoniza um número jazzístico com Benny Goodman e sua Orquestra.

E mais primeiras vezes: era a mulher mais bem paga de Hollywood nos anos em que lá trabalhou e também a maior contribuinte em Imposto de renda; primeira brasileira em turnês por Las Vegas, Cuba e Inglaterra.

Manteve relacionamentos com diversos músicos e atores, dentre os mais famosos, John Wayne e Dana Andrews, mas há quem diga que seu maior erro foi ter se casado, em 1947,com David Sebastian, que de simples empregado de uma produtora de cinema, passou a empresário de sua esposa. À revelia do que a maioria diz sobre a responsabilidade do marido ao viciá-la em álcool e barbitúricos, Ruy Castro, seu biógrafo brasileiro, afirma que Carmen Miranda já consumia bebidas e seus comprimidos eram receitados por médicos para que aguentasse a vasta agenda de compromissos profissionais, já que na época, desconhecia-se os efeitos colaterais dos mesmos. Suas crises depressivas se agravaram em 1948, quando sofreu um aborto espontâneo e passou a consumir ambos em doses elevadas.Em dezembro de 1954, retornou ao Brasil e ficou reclusa no Copacabana Palace Hotel, em processo de desintoxicação. No ano seguinte já estava de volta aos EUA.

No dia 5 de agosto de 1955, em apresentação televisiva, no programa de Jimmy Durante, teve um pequeno desmaio nos braços do apresentador, mas recuperou-se e continuou o número. Na mesma noite, convidou os amigos para uma pequena celebração em sua casa, sem saber que aquela seria sua última noite. Foi encontrada morta no dia seguinte, às 10h30 da manhã, por sua mãe, vítima de um ataque cardíaco fulminante, aos 46 anos. Seu corpo embalsamado, foi enterrado no dia 12 de agosto de 1955, no cemitério de São João Baptista, no Rio de Janeiro.




Carmen Miranda e sua série de “primeiras vezes” nos fez notados e notórios, abriu portas e nos ensinou o valor de nossa música, deixou na história o registro de coisas belíssimas a serem lembradas, transpareceu nosso país em cada interpretação. Mesmo que alguém não goste de sua obra é inegável sua importância histórica e cultural no acervo de primores brasileiros. Merece ser ouvida, assistida e reverenciada.
            
  
Sobre a canção de hoje...         
Quem nunca fez coisas ou aproveitou momentos como se fosse a última chance de sua vida, Paulinho Moska falou exatamente disso em O Último dia, no bug do ano 2000, víamos enquetes sobre o tema, mas muito antes disso, em 1938, o compositor Assis Valente abordou o tema de forma irreverente, em “O Mundo não se acabou”.